sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Nosso Lar - 5 - Recebendo Assistência

– É você o tutelado de Clarêncio?

A pergunta vinha de um jovem de singular e doce expressão.


Grande bolsa pendente da mão, como quem conduzia apetrechos de assistência, endereçava-me ele sorriso acolhedor. Ao meu sinal afirmativo, mostrou-se à vontade e, maneiras fraternas, acentuou:


– Sou Lísias, seu irmão. Meu diretor, o assistente Henrique de Luna, designou-me para servi-lo, enquanto precisar tratamento.


– É enfermeiro? - indaguei.


– Sou visitador dos serviços de saúde. Nessa qualidade, não só coopero na enfermagem, como também assinalo necessidades de socorro, ou providências que se refiram a enfermos recémchegados.


Notando-me a surpresa, explicou:


– Nas minhas condições há numerosos servidores em "Nosso Lar". O amigo ingressou agora na colônia e, naturalmente, ignora a amplitude dos nossos trabalhos. Para fazer uma idéia, basta lembrar que apenas aqui, na seção em que se encontra, existem mais de mil doentes espirituais, e note que este é um dos menores edifícios do nosso parque hospitalar.


– Tudo isso é maravilhoso! - exclamei.


Adivinhando que minhas observações iam descambar para o elogio espontâneo, Lísias levantou-se da poltrona a que se recolhera e começou a auscultar-me, atento, impedindo-me o agradecimento verbal. – A zona dos seus intestinos apresenta lesões sérias com vestígios muito exatos do câncer; a região do fígado revela dilacerações; a dos rins demonstra característicos de esgotamento prematuro.


Sorrindo, bondoso, acrescentou:


– Sabe o irmão o que significa isso?


– Sim - repliquei, o médico esclareceu ontem, explicando que devo esses distúrbios a mim mesmo...


Reconhecendo o acanhamento da confissão reticenciosa, apressou-se a consolar:


– Na turma de oitenta enfermos a que devo assistência diária, cinqüenta e sete se encontram nas suas condições. E talvez ignore que existem, por aqui, os mutilados. Já pensou nisso? Sabe que o homem imprevidente, que gastou os olhos no mal, aqui comparece de órbitas vazias?


Que o malfeitor, interessado em utilizar o dom da locomoção fácil nos atos criminosos, experimenta a desolação da paralisia, quando não é recolhido absolutamente sem pernas? Que os pobres obsidiados nas aberrações sexuais costumam chegar em extrema loucura?

Identificando-me a perplexidade natural, prosseguiu:


– "Nosso Lar" não é estância de espíritos propriamente vitoriosos, se conferirmos ao termo sua razoável acepção. 


Somos felizes, porque temos trabalho; e a alegria habita cada recanto da colônia, porque o Senhor não nos retirou o pão abençoado do
serviço.


Aproveitando a pausa mais longa, exclamei sensibilizado:


– Continue, meu amigo, esclareça-me. Sinto-me aliviado e tranqüilo. Não será esta região um departamento celestial dos eleitos?


Lísias sorriu e explicou:  – Recordemos o antigo ensinamento que se refere a muitos chamados e poucos escolhidos na Terra.


E vagueando o olhar no horizonte longínquo, como a fixar experiências de si mesmo no painel das recordações mais íntimas, acentuou:


– As religiões, no planeta, convocam as criaturas ao banquete celestial. Em sã consciência, ninguém que se tenha aproximado, um dia, da noção de Deus, pode alegar ignorância nesse particular.


Incontável é o número dos chamados, meu amigo; mas, onde os que atendem ao chamado? Com raras exceções, a massa humana prefere aceder a outro gênero de convites. Gasta-se a possibilidade nos desvios do bem, agrava-se o capricho de cada um, elimina-se o corpo físico a golpes de irreflexão. Resultado: milhares de criaturas retiram-se diariamente da esfera da carne em doloroso estado de incompreensão. Multidões sem conta erram em todas as direções nos círculos imediatos à crosta planetária, constituídas de loucos, doentes e ignorantes.


Notando-me a admiração, interrogou:


– Acreditaria, porventura, que a morte do corpo nos conduziria a planos de milagres? Somos compelidos a trabalho áspero, a serviços pesados e não basta isso. Se temos débitos no planeta, por mais alto que ascendamos, é imprescindível voltar, para retificar, lavando o rosto no suor do mundo, desatando algemas de ódio e substituindo-as por laços sagrados de amor. Não seria justo
impor a outrem a tarefa de mondar o campo que semeamos de espinhos, com as próprias mãos.


Abanando a cabeça, acrescentava:


– Caso dos muitos chamados, meu caro. O Senhor não esquece homem algum; todavia, raríssimos homens o recordam.


Acabrunhado com a lembrança dos próprios erros, diante de tão grandes noções de responsabilidade individual, objetei:  


– Como fui perverso!

Contudo, antes que me alongasse noutras exclamações, o visitador colocou a destra carinhosa em meus lábios, murmurando:


– Cale-se! meditemos no trabalho a fazer. No arrependimento verdadeiro é preciso saber falar, para construir de novo.


Em seguida, aplicou-me passes magnéticos, atenciosamente.


Fazendo os curativos na zona intestinal, esclareceu:


– Não observa o tratamento especializado da zona cancerosa?


Pois note bem: toda medicina honesta é serviço de amor, atividade de socorro justo; mas o trabalho de cura é peculiar a cada espírito. Meu irmão será tratado carinhosamente, sentir-se-á forte como nos tempos mais belos da sua juventude terrena, trabalhará muito e, creio, será um dos melhores colaboradores em "Nosso Lar"; entretanto, a causa dos seus males persistirá em si mesmo, até que se desfaça dos germes de perversão da saúde divina, que agregou ao seu corpo sutil pelo descuido moral e pelo desejo de gozar mais que os outros. A carne terrestre, onde abusamos, é também o campo bendito onde conseguimos realizar frutuosos labores de cura radical, quando permanecemos atentos ao dever justo.


Meditei os conceitos, ponderei a bondade divina e, na exaltação da sensibilidade, chorei copiosamente.


Lísias, contudo, terminou o tratamento do dia, com serenidade, e falou:


– Quando as lágrimas não se originam da revolta, sempre constituem remédio depurador. Chore, meu amigo. Desabafe o coração. E abençoemos aquelas beneméritas organizações microscópicas que são as células de carne na Terra. Tão humildes e tão preciosas, tão detestadas e tão sublimes pelo espírito de serviço.


Sem elas, que nos oferecem templo à retificação, quantos milênios  gastaríamos na ignorância? 


Assim falando, afagou-me carinhosamente a fronte abatida e despediu-se com um ósculo de amor.

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