sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Mensagem De André Luiz

A vida não cessa. A vida é fonte eterna e a morte é jogo escuro das ilusões.

O grande rio tem seu trajeto, antes do mar imenso.


Copiando-lhe a expressão, a alma percorre igualmente caminhos variados e etapas diversas, também recebe afluentes de conhecimentos, aqui e ali, avoluma-se em expressão e purifica-se em qualidade, antes de encontrar o Oceano Eterno da Sabedoria.

Cerrar os olhos carnais constitui operação demasiadamente simples.


Permutar a roupagem física não decide o problema fundamental da iluminação, como a troca de vestidos nada tem que ver com as soluções profundas do destino e do ser.


Oh! caminhos das almas, misteriosos caminhos do coração! É mister percorrer-vos, antes de tentar a suprema equação da Vida Eterna! É indispensável viver o vosso drama, conhecer-vos detalhe a detalhe, no longo processo do aperfeiçoamento espiritual!...


Seria extremamente infantil a crença de que o simples "baixar do pano" resolvesse transcendentes questões do Infinito.


Uma existência é um ato.


Um corpo - uma veste.


Um século - um dia.


Um serviço - uma experiência.


Um triunfo - uma aquisição.


Uma morte - um sopro renovador.


Quantas existências, quantos corpos, quantos séculos, quantos serviços, quantos triunfos, quantas mortes necessitamos ainda?


E o letrado em filosofia religiosa fala de deliberações finais e posições definitivas!

Ai! por toda parte, os cultos em doutrina e os analfabetos do espírito!


É preciso muito esforço do homem para ingressar na academia do Evangelho do Cristo, ingresso que se verifica, quase sempre, de estranha maneira - ele só, na companhia do Mestre, efetuando o curso difícil, recebendo lições sem cátedras visíveis e ouvindo vastas dissertações sem palavras articuladas.


Muito longa, portanto, nossa jornada laboriosa.


Nosso esforço pobre quer traduzir apenas uma idéia dessa verdade fundamental.


Grato, pois, meus amigos!


Manifestamo-nos, junto a vós outros, no anonimato que obedece à caridade fraternal. A existência humana apresenta grande maioria de vasos frágeis, que não podem conter ainda toda a verdade. Aliás, não nos interessaria, agora, senão a experiência profunda, com os seus valores coletivos. Não atormentaremos alguém com a idéia da eternidade.


Que os vasos se fortaleçam, em primeiro lugar. Forneceremos, somente, algumas ligeiras notícias ao espírito sequioso dos nossos irmãos na senda de realização espiritual, e que compreendem conosco que "o espírito sopra onde
quer".


E, agora, amigos, que meus agradecimentos se calem no papel, recolhendo-se ao grande silêncio da simpatia e da gratidão.


Atração e reconhecimento, amor e júbilo moram na alma. Crede que guardarei semelhantes valores comigo, a vosso respeito, no santuário do coração.


Que o Senhor nos abençoe.


ANDRÉ LUIZ
Nosso Lar - 1 - Nas Zonas Inferiores

Eu guardava a impressão de haver perdido a idéia de tempo.

A noção de espaço esvaíra-se-me de há muito.


Estava convicto de não mais pertencer ao número dos encarnados no mundo e, no entanto, meus pulmões respiravam a longos haustos.


Desde quando me tornara joguete de forças irresistíveis? Impossível esclarecer.


Sentia-me, na verdade, amargurado duende nas grades escuras do horror. Cabelos eriçados, coração aos saltos, medo terrível senhoreando-me, muita vez gritei como louco, implorei piedade e clamei contra o doloroso desânimo que me subjugava o espírito; mas, quando o silêncio implacável não me absorvia a voz estentórica, lamentos mais comovedores que os meus respondiam-me aos clamores. Outras vezes gargalhadas sinistras rasgavam a quietude ambiente.


Algum companheiro desconhecido estaria, a meu ver, prisioneiro da loucura. Formas diabólicas, rostos alvares, expressões animalescas surgiam, de quando em quando, agravando-me o assombro. 

A paisagem, quando não totalmente escura, parecia
banhada de luz alvacenta, como que amortalhada em neblina espessa, que os raios de Sol aquecessem de muito longe.


E a estranha viagem prosseguia... Com que fim?


Quem o poderia dizer? Apenas sabia que fugia sempre... O medo me impelia de roldão. Onde o lar, a esposa, os filhos?

Perdera toda a noção de rumo. O receio do ignoto e o pavor da treva absorviam-me todas as faculdades de raciocínio, logo que me desprendera dos últimos laços físicos, em pleno sepulcro! Atormentava-me a consciência: preferiria a ausência total da razão, o não-ser.

De início, as lágrimas lavavam-me incessantemente o rosto e apenas, em minutos raros, felicitava-me a bênção do sono. Interrompia- se, porém, bruscamente, a sensação de alívio. Seres monstruosos acordavam-me, irônicos; era imprescindível fugir deles.


Reconhecia, agora, a esfera diferente a erguer-se da poalha do mundo e, todavia, era tarde. Pensamentos angustiosos atritavam-me o cérebro. Mal delineava projetos de solução, incidentes numerosos impeliam-me a considerações estonteantes. 


Em momento algum, o problema religioso surgiu tão profundo a meus olhos. Os princípios puramente filosóficos, políticos e científicos, figuravam- se-me agora extremamente secundários para a vida humana.

Significavam, a meu ver, valioso patrimônio nos planos da Terra, mas urgia reconhecer que a humanidade não se constitui de gerações transitórias e sim de Espíritos eternos, a caminho de gloriosa destinação.


Verificava que alguma coisa permanece acima de toda cogitação meramente intelectual. Esse algo é a fé, manifestação Divina ao homem. Semelhante análise surgia, contudo, tardiamente.

De fato, conhecia as letras do Velho Testamento e muita vez folheara o Evangelho; entretanto, era forçoso reconhecer que nunca procurara as letras sagradas com a luz do coração. 


Identificava- as através da crítica de escritores menos afeitos ao sentimento e à consciência, ou em pleno desacordo com as verdades essenciais.

Noutras ocasiões, interpretava-as com o sacerdócio organizado, sem sair jamais do círculo de contradições, onde estacionara voluntariamente.


Em verdade, não fora um criminoso, no meu próprio conceito.


A filosofia do imediatismo, porém, absorvera-me.


A existência terrestre, que a morte transformara, não fora assinalada de lances diferentes da craveira comum.  Filho de pais talvez excessivamente generosos, conquistara meus títulos universitários sem maior sacrifício, compartilhara os vícios da mocidade do meu tempo, organizara o lar, conseguira filhos, perseguira situações estáveis que garantissem a tranqüilidade econômica do meu grupo familiar, mas, examinando atentamente a mim mesmo, algo me fazia experimentar a noção de tempo perdido, com a silenciosa acusação da consciência. 

Habitara a Terra, gozara-lhe os bens, colhera as bênçãos da vida, mas não lhe retribuíra ceitil do débito enorme. Tivera pais, cuja generosidade e sacrifícios por mim nunca avaliei; esposa e filhos que prendera, ferozmente, nas teias rijas do egoísmo destruidor. 

Possuíra um lar que fechei a todos os que palmilhavam o deserto da angústia. Deliciara-me com os júbilos da família, esquecido de estender essa bênção divina à imensa família humana, surdo a comezinhos deveres de fraternidade.

Enfim, como a flor de estufa, não suportava agora o clima das realidades eternas. Não desenvolvera os germes divinos que o Senhor da Vida colocara em minh'alma. 


Sufocara-os, criminosamente, no desejo incontido de bem estar. Não adestrara órgãos para a vida nova. Era justo, pois, que aí despertasse à maneira de aleijado que, restituído ao rio infinito da eternidade, não pudesse acompanhar senão compulsoriamente a carreira incessante das águas; ou como mendigo infeliz, que, exausto em pleno deserto, perambula à mercê de impetuosos tufões.

Oh! amigos da Terra! quantos de vós podereis evitar o caminho da amargura com o preparo dos campos interiores do coração?


Acendei vossas luzes antes de atravessar a grande sombra.


Buscai a verdade, antes que a verdade vos surpreenda. Suai agora para não chorardes depois.
Nosso Lar - 2 - Clarêncio 

"Suicida! Suicida! Criminoso! Infame!" - gritos assim, cercavam- me de todos os lados.

Onde os sicários de coração empedernido?

Por vezes, enxergava-os de relance, escorregadios na treva espessa e, quando meu desespero atingia o auge, atacava-os, mobilizando extremas energias.


Em vão, porém, esmurrava o ar nos paroxismos da cólera. Gargalhadas sarcásticas feriam-me os ouvidos, enquanto os vultos negros desapareciam na sombra.

Para quem apelar? Torturava-me a fome, a sede me escaldava. 


Comezinhos fenômenos da experiência material patenteavam-se- me aos olhos. Crescera-me a barba, a roupa começava a romper-se com os esforços da resistência, na região desconhecida. A circunstância mais dolorosa, no entanto, não é o terrível abandono a que me sentia votado, mas o assédio incessante de forças perversas que me assomavam nos caminhos ermos e obscuros. Irritavam- me, aniquilavam-me a possibilidade de concatenar idéias.

Desejava ponderar maduramente a situação, esquadrinhar razões e estabelecer novas diretrizes ao pensamento, mas aquelas vozes, aqueles lamentos misturados de acusações nominais, desnorteavam-me irremediavelmente.


– Que buscas, infeliz! Aonde vais, suicida?


Tais objurgatórias, incessantemente repetidas, perturbavam-me o coração. Infeliz, sim; mas, suicida? - nunca! Essas increpações, a meu ver, não eram procedentes. Eu havia deixado o corpo físico a contragosto. Recordava meu porfiado duelo com a morte.


Ainda julgava ouvir os últimos pareceres médicos, enunciados na Casa de Saúde; lembrava a assistência desvelada que tivera, os curativos dolorosos que experimentara nos dias longos que se seguiram à delicada operação dos intestinos. Sentia, no curso dessas reminiscências, o contacto do termômetro, o pique desagradável da agulha de injeções e, por fim, a última cena que precedera o grande sono: minha esposa ainda jovem e os três filhos
contemplando-me, no terror da eterna separação. 


Depois... o despertar na paisagem úmida e escura e a grande caminhada que parecia sem-fim.

Por que a pecha de suicídio, quando fora compelido a abandonar a casa, a família e o doce convívio dos meus? O homem mais forte conhecerá limites à resistência emocional. Firme e resoluto a princípio, comecei por entregar-me a longos períodos de desânimo e, longe de prosseguir na fortaleza moral, por ignorar o próprio fim, senti que as lágrimas longamente represadas visitavam- me com mais freqüência, extravasando do coração.


A quem recorrer? Por maior que fosse a cultura intelectual trazida do mundo, não poderia alterar, agora, a realidade da vida.


Meus conhecimentos, ante o infinito, semelhavam-se a pequenas bolhas de sabão levadas ao vento impetuoso que transforma as paisagens. Eu era alguma coisa que o tufão da verdade carreava para muito longe. Entretanto, a situação não modificava a outra realidade do meu ser essencial. Perguntando a mim mesmo se não enlouquecera, encontrava a consciência vigilante, esclarecendo-me que continuava a ser eu mesmo, com o sentimento e a cultura colhidos na experiência material. Persistiam as necessidades fisiológicas, sem modificação. Castigava-me a fome todas as fibras e, nada obstante, o abatimento progressivo não me fazia cair definitivamente em absoluta exaustão. De quando em quando, deparavam-se-me verduras que me pareciam agrestes, em torno de humildes filetes d'água a que me atirava sequioso.


Devorava as folhas desconhecidas, colava os lábios à nascente turva, enquantomo permitiam as forças irresistíveis, a impelirem-me para frente.

Muita vez suguei a lama da estrada, recordei o antigo pão de cada dia, vertendo copioso pranto. Não raro, era imprescindível ocultar-me das enormes manadas de seres animalescos, que passavam em bando, quais feras insaciáveis. Eram quadros de estarrecer! acentuava-se o desalento. Foi quando comecei a recordar que deveria existir um Autor da Vida, fosse onde fosse.


Essa idéia confortou-me. Eu, que detestara as religiões no mundo, experimentava agora a necessidade de conforto místico. Médico extremamente arraigado ao negativismo da minha geração, impunhase- me atitude renovadora. Tornava-se imprescindível confessar a falência do amor-próprio, a que me consagrara orgulhoso.

E, quando as energias me faltaram de todo, quando me senti absolutamente colado ao lodo da Terra, sem forças para reerguerme, pedi ao Supremo Autor da Natureza me estendesse mãos paternais, em tão amargurosa emergência.


Quanto tempo durou a rogativa? Quantas horas consagrei à súplica, de mãos-postas, imitando a criança aflita?


Apenas sei que a chuva das lágrimas me lavou o rosto; que todos os meus sentimentos se concentraram na prece dolorosa. Estaria, então, completamente esquecido?

Não era, igualmente, filho de Deus, embora não cogitasse de conhecer-lhe a atividade sublime quando engolfado nas vaidades da experiência humana? Por que não me perdoaria o Eterno Pai, quando providenciava ninho às aves inconscientes e protegia, bondoso, a flor tenra dos campos agrestes?

Ah! é preciso haver sofrido muito, para entender todas as misteriosas belezas da oração; é necessário haver conhecido o remorso, a humilhação, a extrema desventura, para tomar com eficácia o sublime elixir de esperança. Foi nesse instante que as neblinas espessas se dissiparam e alguém surgiu, emissário dos Céus. Um velhinho simpático me sorriu paternalmente. Inclinou-se, fixou nos meus os grandes olhos lúcidos, e falou:


– Coragem, meu filho! O Senhor não te desampara.


Amargurado pranto banhava-me a alma toda. 


Emocionado, quis traduzir meu júbilo, comentar a consolação que me chegava, mas, reunindo todas as forças que me restavam, pude apenas inquirir:

– Quem sois, generoso emissário de Deus?


O inesperado benfeitor sorriu bondoso e respondeu:


– Chama-me Clarêncio, sou apenas teu irmão.


E, percebendo o meu esgotamento, acrescentou:


– Agora, permanece calmo e silencioso. É preciso descansar para reaver energias.


Em seguida, chamou dois companheiros que guardavam atitude de servos desvelados e ordenou:


– Prestemos ao nosso amigo os socorros de emergência.


Alvo lençol foi estendido ali mesmo, à guisa de maca improvisada, aprestando-se ambos os cooperadores a transportarem-me, generosamente.


Quando me alçavam, cuidadosos, Clarêncio meditou um instante e esclareceu, como quem recorda inadiável obrigação:


– Vamos sem demora. Preciso atingir "Nosso Lar" com a presteza possível.
Nosso Lar - 3 - A Oração Coletiva

Embora transportado à maneira de ferido comum, lobriguei o quadro confortante que se desdobrava à minha vista.

Clarêncio, que se apoiava num cajado de substância luminosa, deteve-se à frente de grande porta encravada em altos muros, cobertos de trepadeiras floridas e graciosas. Tateando um ponto da muralha, fez-se longa abertura, através da qual penetramos, silenciosos.


Branda claridade inundava ali todas as coisas. Ao longe, gracioso foco de luz dava a idéia de um pôr do sol em tardes primaveris.


A medida que avançávamos, conseguia identificar preciosas construções, situadas em extensos jardins.


Ao sinal de Clarêncio, os condutores depuseram, devagarinho, a maca improvisada. A meus olhos surgiu, então, a porta acolhedora de alvo edifício, à feição de grande hospital terreno.


Dois jovens, envergando túnicas de níveo linho, acorreram pressurosos ao chamado de meu benfeitor, e quando me acomodavam num leito de emergência, para me conduzirem cuidadosamente ao interior, ouvi o generoso ancião recomendar, carinhoso:


– Guardem nosso tutelado no pavilhão da direita.


Esperam agora por mim. Amanhã cedo voltarei a vê-lo.

Enderecei-lhe um olhar de gratidão, ao mesmo tempo em que era conduzido a confortável aposento de amplas proporções, ricamente mobilado, onde me ofereceram leito acolhedor.


Envolvendo os dois enfermeiros na vibração do meu reconhecimento, esforcei-me por lhes dirigir a palavra, conseguindo dizer por fim:  – Amigos, por quem sois, explicai-me em que novo mundo me encontro... De que estrela me vem, agora, esta luz confortadora e brilhante?


Um deles afagou-me a fronte, como se fora conhecido pessoal de longo tempo e acentuou:


– Estamos nas esferas espirituais vizinhas da Terra, e o Sol que nos ilumina neste momento é o mesmo que nos vivificava o corpo físico. Aqui, entretanto, nossa percepção visual é muito mais rica. A estrela que o Senhor acendeu para os nossos trabalhos terrestres é mais preciosa e bela do que a supomos quando no círculo carnal. Nosso Sol é a divina matriz da vida e a claridade que irradia provém do Autor da Criação.


Meu ego, como que absorvido em onda de infinito respeito, fixou a luz branda que invadia o quarto, através das janelas, e perdi-me no curso de profundas cogitações.


Recordei, então, que nunca fixara o Sol, nos dias terrestres, meditando na imensurável bondade dAquele que no-lo concede para o caminho eterno da vida. Semelhava-me assim ao cego venturoso, que abre os olhos para a Natureza sublime, depois de longos séculos de escuridão.

A essa altura, serviram-me caldo reconfortante, seguido de água muito fresca, que me pareceu portadora de fluidos Divinos.


Aquela reduzida porção de líquido reanimava-me inesperadamente.


Não saberia dizer que espécie de sopa era aquela; se alimentação sedativa, se remédio salutar. Novas energias amparavam-me a alma, profundas comoções vibravam-me no espírito.


Minha maior emoção, todavia, reservava-se para instantes depois.


Mal não saíra da consoladora surpresa, divina melodia penetrou quarto adentro, parecendo suave colméia de sons a caminho das esferas superiores.


Aquelas notas de maravilhosa harmonia atravessavam-me o coração. Ante meu olhar indagador, o enfermeiro, que permanecia ao lado, esclareceu, bondoso:

É chegado o crepúsculo em "Nosso Lar". Em todos os núcleos desta colônia de trabalho, consagrada ao Cristo, há ligação direta com as preces da Governadoria.


E enquanto a música embalsamava o ambiente, despediu-se, atencioso:


– Agora, fique em paz. Voltarei logo após a oração.


Empolgou-me ansiedade súbita.


– Não poderei acompanhar-vos? - perguntei, suplicante.


– Está ainda fraco - esclareceu, gentil -, todavia, caso sinta-se disposto...


Aquela melodia renovava-me as energias profundas. Levantei-me vencendo dificuldades e agarrei-me ao braço fraternal que se me estendia. Seguindo vacilante, cheguei a enorme salão, onde numerosa assembléia meditava em silêncio, profundamente recolhida.


Da abóbada cheia de claridade brilhante, pendiam delicadas e flóreas guirlandas, que vinham do teto à base, formando radiosos símbolos de Espiritualidade Superior. Ninguém parecia dar conta da minha presença, ao passo que mal dissimulava eu a surpresa inexcedível. Todos os circunstantes, atentos, pareciam aguardar alguma coisa. Contendo a custo numerosas indagações que me esfervilhavam na mente, notei que ao fundo, em tela gigantesca, desenhava-se prodigioso quadro de luz quase feérica.


Obedecendo a processos adiantados de televisão, surgiu o cenário de templo maravilhoso. Sentado em lugar de destaque, um ancião coroado de luz fixava o Alto, em atitude de prece, envergando alva túnica de irradiações resplandecentes. Em plano inferior, setenta e duas figuras pareciam acompanhá-lo em respeitoso silêncio. Altamente surpreendido, reparei Clarêncio participando da assembléia, entre os que cercavam o velhinho refulgente.


Apertei o braço do enfermeiro amigo e, compreendendo ele que minhas perguntas não se fariam esperar, esclareceu em voz baixa, que mais se assemelhava a leve sopro:

– Conserve-se tranqüilo. Todas as residências e instituições de "Nosso Lar" estão orando com o Governador, através da audição e visão a distância. Louvemos o Coração Invisível do Céu.


Mal terminara a explicação, as setenta e duas figuras começaram a cantar harmonioso hino, repleto de indefinível beleza. 


A fisionomia de Clarêncio, no círculo dos veneráveis companheiros, figurou-se-me tocada de mais intensa luz. O cântico celeste constituía- se de notas angelicais, de sublimado reconhecimento. 

Pairavam no recinto misteriosas vibrações de paz e de alegria e, quando as notas argentinas fizeram delicioso staccato, desenhou-se ao longe, em plano elevado, um coração maravilhosamente azul,
com estrias douradas. Cariciosa música, em seguida, respondia aos louvores, procedente talvez de esferas distantes.


Foi aí que abundante chuva de flores azuis se derramou sobre nós; mas, se fixávamos os miosótis celestiais, não conseguíamos detê-los nas mãos. As corolas minúsculas desfaziam-se de leve, ao tocar-nos a fronte, experimentando eu, por minha vez, singular renovação de energias ao contacto das pétalas fluídicas que me balsamizavam o
coração.


Terminada a sublime oração, regressei ao aposento de enfermo, amparado pelo amigo que me atendia de perto.


Entretanto, não era mais o doente grave de horas antes. A primeira prece coletiva, em "Nosso Lar", operara em mim completa transformação.

Conforto inesperado envolvia-me a alma. Pela primeira vez, depois de anos consecutivos de sofrimento, o pobre coração, saudoso e atormentado, à maneira de cálice muito tempo vazio, enchera-se de novo das gotas generosas do licor da esperança.


1 Imagem simbólica formada pelas vibrações mentais dos habitantes da
colônia. - (Nota do Autor espiritual)
Nosso Lar - 4 - O Médico Espiritual

No dia imediato, após reparador e profundo repouso, experimentei a bênção radiosa do Sol amigo, qual suave mensagem ao
coração. 


Claridade reconfortante atravessava ampla janela, inundando o recinto de cariciosa luz. Sentia-me outro. Energias novas tocavam-me o íntimo. Tinha a impressão de sorver a alegria da vida, a longos haustos. Na alma, apenas um ponto sombrio - a
saudade do lar, o apego à família que ficara distante. Numerosas interrogações pairavam-me na mente, mas tão grande era a sensação de alívio que eu sossegava o espírito, longe de qualquer interpelação.


Quis levantar-me, gozar o espetáculo da Natureza cheia de brisas e de luz, mas não o consegui e concluí que, sem a cooperação magnética do enfermeiro, tornava-se-me impossível deixar o leito.


Não voltara a mim das surpresas consecutivas, quando se abriu a porta e vi entrar Clarêncio acompanhado por simpático desconhecido. Cumprimentaram-me, atenciosos, desejando-me paz. Meu benfeitor da véspera indagou do meu estado geral.


Acorreu o enfermeiro, prestando informações.


Sorridente, o velhinho amigo apresentou-me o companheiro.


Tratava- se, disse, do irmão Henrique de Luna, do Serviço de Assistência Médica da colônia espiritual. Trajado de branco, traços fisionômicos irradiando enorme simpatia, Henrique auscultou- me demoradamente, sorriu e explicou:


– É de lamentar que tenha vindo pelo suicídio.


Enquanto Clarêncio permanecia sereno, senti que singular assomo de revolta me borbulhava no íntimo. Suicídio? Recordei as acusações dos seres perversos das sombras. Não obstante o cabedal de gratidão que começava a acumular, não calei a incriminação.


– Creio haja engano - asseverei, melindrado -, meu regresso do mundo não teve essa causa. Lutei mais de quarenta dias, na Casa de Saúde, tentando vencer a morte. Sofri duas operações graves, devido a oclusão intestinal...


– Sim - esclareceu o médico, demonstrando a mesma serenidade superior -, mas a oclusão radicava-se em causas profundas.


Talvez o amigo não tenha ponderado bastante. O organismo espiritual apresenta em si mesmo a história completa das ações praticadas no mundo.


E inclinando-se, atencioso, indicava determinados pontos do meu corpo:


– Vejamos a zona intestinal - exclamou. - A oclusão derivava de elementos cancerosos, e estes, por sua vez, de algumas leviandades do meu estimado irmão, no campo da sífilis. A moléstia talvez não assumisse características tão graves, se o seu procedimento mental no planeta estivesse enquadrado nos princípios da fraternidade e da temperança. Entretanto, seu modo especial de conviver, muita vez exasperado e sombrio, captava destruidoras vibrações naqueles que o ouviam. Nunca imaginou que a cólera fosse manancial de forças negativas para nós mesmos? 


A ausência de autodomínio, a inadvertência no trato com os semelhantes, aos quais muitas vezes ofendeu sem refletir, conduziam-no freqüentemente à esfera dos seres doentes e inferiores. Tal circunstância agravou, de muito, o seu estado físico.

Depois de longa pausa, em que me examinava atentamente, continuou:  – Já observou, meu amigo, que seu fígado foi maltratado pela sua própria ação; que os rins foram esquecidos, com terrível menosprezo às dádivas sagradas?


Singular desapontamento invadira-me o coração.


Parecendo desconhecer a angústia que me oprimia, continuava o médico, esclarecendo:

– Os órgãos do corpo somático possuem incalculáveis reservas, segundo os desígnios do Senhor. O meu amigo, no entanto, iludiu excelentes oportunidades, esperdiçando patrimônios preciosos da experiência física. A longa tarefa, que lhe foi confiada pelos Maiores da Espiritualidade Superior, foi reduzida a meras tentativas de trabalho que não se consumou. Todo o aparelho gástrico foi destruído à custa de excessos de alimentação e bebidas alcoólicas, aparentemente sem importância.


Devorou-lhe a sífilis energias essenciais. Como vê, o suicídio é incontestável.

Meditei nos problemas dos caminhos humanos, refletindo nas oportunidades perdidas. Na vida humana, conseguia ajustar numerosas máscaras ao rosto, talhando-as conforme as situações.


 Aliás, não poderia supor, noutro tempo, que me seriam pedidas contas de episódios simples, que costumava considerar como fatos sem maior significação. Conceituara, até ali, os erros humanos, segundo os preceitos da criminologia. Todo acontecimento insignificante, estranho aos códigos, entraria na relação de fenômenos naturais.

Deparava-se-me, porém, agora, outro sistema de verificação das faltas cometidas. Não me defrontavam tribunais de tortura, nem me surpreendiam abismos infernais; contudo, benfeitores sorridentes comentavam-me as fraquezas como quem cuida de uma criança desorientada, longe das vistas paternas. Aquele interesse espontâneo, no entanto, feria-me a vaidade de homem.


Talvez que, visitado por figuras diabólicas a me torturarem, de tridente nas mãos, encontrasse forças para tornar a derrota menos amarga. Todavia, a bondade exuberante de Clarêncio, a inflexão de ternura do médico, a calma fraternal do enfermeiro, penetravam-me fundo o espírito. Não me dilacerava o desejo de reação; doía-me a vergonha. E chorei. Rosto entre as mãos, qual menino contrariado e infeliz, pus-me a soluçar com a dor que me parecia irremediável. Não havia como discordar. Henrique de Luna falava com sobejas razões. Por fim, abafando os impulsos vaidosos, reconheci a extensão de minhas leviandades de outros tempos. A falsa noção da dignidade pessoal cedia terreno à justiça. Perante minha visão espiritual só existia, agora, uma realidade torturante:


era verdadeiramente um suicida, perdera o ensejo precioso da experiência humana, não passava de náufrago a quem se recolhia por caridade.


Foi então que o generoso Clarêncio, sentando-se no leito, a meu lado, afagou-me paternalmente os cabelos e falou comovido:


– Oh! meu filho, não te lastimes tanto. Busquei-te atendendo à intercessão dos que te amam, dos planos mais altos. Tuas lágrimas atingem seus corações. Não desejas ser grato, mantendo-te tranqüilo no exame das próprias faltas? Na verdade, tua posição é a do suicida inconsciente; mas é necessário reconhecer que centenas de criaturas se ausentam diariamente da Terra, nas mesmas condições. Acalma-te, pois.


Aproveita os tesouros do arrependimento, guarda a bênção do remorso, embora tardio, sem esquecer que a aflição não resolve problemas. Confia no Senhor e em nossa dedicação fraternal. Sossega a alma perturbada, porque muitos de nós outros já perambulamos igualmente nos teus caminhos.

Ante a generosidade que transbordava dessas palavras, mergulhei a cabeça em seu colo paternal e chorei longamente.
Nosso Lar - 5 - Recebendo Assistência

– É você o tutelado de Clarêncio?

A pergunta vinha de um jovem de singular e doce expressão.


Grande bolsa pendente da mão, como quem conduzia apetrechos de assistência, endereçava-me ele sorriso acolhedor. Ao meu sinal afirmativo, mostrou-se à vontade e, maneiras fraternas, acentuou:


– Sou Lísias, seu irmão. Meu diretor, o assistente Henrique de Luna, designou-me para servi-lo, enquanto precisar tratamento.


– É enfermeiro? - indaguei.


– Sou visitador dos serviços de saúde. Nessa qualidade, não só coopero na enfermagem, como também assinalo necessidades de socorro, ou providências que se refiram a enfermos recémchegados.


Notando-me a surpresa, explicou:


– Nas minhas condições há numerosos servidores em "Nosso Lar". O amigo ingressou agora na colônia e, naturalmente, ignora a amplitude dos nossos trabalhos. Para fazer uma idéia, basta lembrar que apenas aqui, na seção em que se encontra, existem mais de mil doentes espirituais, e note que este é um dos menores edifícios do nosso parque hospitalar.


– Tudo isso é maravilhoso! - exclamei.


Adivinhando que minhas observações iam descambar para o elogio espontâneo, Lísias levantou-se da poltrona a que se recolhera e começou a auscultar-me, atento, impedindo-me o agradecimento verbal. – A zona dos seus intestinos apresenta lesões sérias com vestígios muito exatos do câncer; a região do fígado revela dilacerações; a dos rins demonstra característicos de esgotamento prematuro.


Sorrindo, bondoso, acrescentou:


– Sabe o irmão o que significa isso?


– Sim - repliquei, o médico esclareceu ontem, explicando que devo esses distúrbios a mim mesmo...


Reconhecendo o acanhamento da confissão reticenciosa, apressou-se a consolar:


– Na turma de oitenta enfermos a que devo assistência diária, cinqüenta e sete se encontram nas suas condições. E talvez ignore que existem, por aqui, os mutilados. Já pensou nisso? Sabe que o homem imprevidente, que gastou os olhos no mal, aqui comparece de órbitas vazias?


Que o malfeitor, interessado em utilizar o dom da locomoção fácil nos atos criminosos, experimenta a desolação da paralisia, quando não é recolhido absolutamente sem pernas? Que os pobres obsidiados nas aberrações sexuais costumam chegar em extrema loucura?

Identificando-me a perplexidade natural, prosseguiu:


– "Nosso Lar" não é estância de espíritos propriamente vitoriosos, se conferirmos ao termo sua razoável acepção. 


Somos felizes, porque temos trabalho; e a alegria habita cada recanto da colônia, porque o Senhor não nos retirou o pão abençoado do
serviço.


Aproveitando a pausa mais longa, exclamei sensibilizado:


– Continue, meu amigo, esclareça-me. Sinto-me aliviado e tranqüilo. Não será esta região um departamento celestial dos eleitos?


Lísias sorriu e explicou:  – Recordemos o antigo ensinamento que se refere a muitos chamados e poucos escolhidos na Terra.


E vagueando o olhar no horizonte longínquo, como a fixar experiências de si mesmo no painel das recordações mais íntimas, acentuou:


– As religiões, no planeta, convocam as criaturas ao banquete celestial. Em sã consciência, ninguém que se tenha aproximado, um dia, da noção de Deus, pode alegar ignorância nesse particular.


Incontável é o número dos chamados, meu amigo; mas, onde os que atendem ao chamado? Com raras exceções, a massa humana prefere aceder a outro gênero de convites. Gasta-se a possibilidade nos desvios do bem, agrava-se o capricho de cada um, elimina-se o corpo físico a golpes de irreflexão. Resultado: milhares de criaturas retiram-se diariamente da esfera da carne em doloroso estado de incompreensão. Multidões sem conta erram em todas as direções nos círculos imediatos à crosta planetária, constituídas de loucos, doentes e ignorantes.


Notando-me a admiração, interrogou:


– Acreditaria, porventura, que a morte do corpo nos conduziria a planos de milagres? Somos compelidos a trabalho áspero, a serviços pesados e não basta isso. Se temos débitos no planeta, por mais alto que ascendamos, é imprescindível voltar, para retificar, lavando o rosto no suor do mundo, desatando algemas de ódio e substituindo-as por laços sagrados de amor. Não seria justo
impor a outrem a tarefa de mondar o campo que semeamos de espinhos, com as próprias mãos.


Abanando a cabeça, acrescentava:


– Caso dos muitos chamados, meu caro. O Senhor não esquece homem algum; todavia, raríssimos homens o recordam.


Acabrunhado com a lembrança dos próprios erros, diante de tão grandes noções de responsabilidade individual, objetei:  


– Como fui perverso!

Contudo, antes que me alongasse noutras exclamações, o visitador colocou a destra carinhosa em meus lábios, murmurando:


– Cale-se! meditemos no trabalho a fazer. No arrependimento verdadeiro é preciso saber falar, para construir de novo.


Em seguida, aplicou-me passes magnéticos, atenciosamente.


Fazendo os curativos na zona intestinal, esclareceu:


– Não observa o tratamento especializado da zona cancerosa?


Pois note bem: toda medicina honesta é serviço de amor, atividade de socorro justo; mas o trabalho de cura é peculiar a cada espírito. Meu irmão será tratado carinhosamente, sentir-se-á forte como nos tempos mais belos da sua juventude terrena, trabalhará muito e, creio, será um dos melhores colaboradores em "Nosso Lar"; entretanto, a causa dos seus males persistirá em si mesmo, até que se desfaça dos germes de perversão da saúde divina, que agregou ao seu corpo sutil pelo descuido moral e pelo desejo de gozar mais que os outros. A carne terrestre, onde abusamos, é também o campo bendito onde conseguimos realizar frutuosos labores de cura radical, quando permanecemos atentos ao dever justo.


Meditei os conceitos, ponderei a bondade divina e, na exaltação da sensibilidade, chorei copiosamente.


Lísias, contudo, terminou o tratamento do dia, com serenidade, e falou:


– Quando as lágrimas não se originam da revolta, sempre constituem remédio depurador. Chore, meu amigo. Desabafe o coração. E abençoemos aquelas beneméritas organizações microscópicas que são as células de carne na Terra. Tão humildes e tão preciosas, tão detestadas e tão sublimes pelo espírito de serviço.


Sem elas, que nos oferecem templo à retificação, quantos milênios  gastaríamos na ignorância? 


Assim falando, afagou-me carinhosamente a fronte abatida e despediu-se com um ósculo de amor.
Nosso Lar - 6 - Precioso Aviso

No dia imediato, após a oração do crepúsculo, Clarêncio me procurou em companhia do atencioso visitador.

Fisionomia a irradiar generosidade, perguntou, abraçandome:


– Como vai? Melhorzinho?


Esbocei o gesto do enfermo que se vê acariciado na Terra, amolecendo as fibras emotivas. No mundo, às vezes, o carinho fraterno é mal interpretado.


Obedecendo ao velho vício, comecei a explicar-me, enquanto os dois benfeitores se sentavam comodamente a meu lado:

– Não posso negar que esteja melhor; entretanto, sofro intensamente.


Muitas dores na zona intestinal, estranhas sensações de angústia no coração. Nunca supus fosse capaz de tamanha resistência, meu amigo. Ah! como tem sido pesada a minha cruz!...


Agora que posso concatenar idéias, creio que a dor me aniquilou todas as forças disponíveis...


Clarêncio ouvia, atencioso, demonstrando grande interesse pelas minhas lamentações, sem o menor gesto que denunciasse o propósito de intervir no assunto. Encorajado com essa atitude, continuei:


– Além do mais, meus sofrimentos morais são enormes e inexprimíveis.


Amainada a tormenta exterior com os socorros
recebidos, volto agora às tempestades íntimas. Que terá sido feito de minha esposa, de meus filhos?


Teria o meu primogênito conseguido progredir, segundo meu velho ideal? E as filhinhas? 

Minha desventurada Zélia muitas vezes afirmou que morreria de saudades, se um dia eu lhe faltasse. Admirável esposa! Ainda lhe sinto as lágrimas dos momentos derradeiros. Não sei desde quando vivo o pesadelo da distância... Continuadas dilacerações roubaram-me a noção do tempo. Onde estará minha pobre companheira? 

Chorando junto às cinzas do meu corpo, ou nalgum recanto escuro das regiões da morte? Oh! minha dor é muito amarga! Que terrível destino o do homem penhorado no devotamento à família! Creio que raras criaturas terão padecido tanto quanto eu!... No planeta, vicissitudes, desenganos, doenças, incompreensões e amarguras, abafando escassas notas de alegria; depois, os sofrimentos da morte do corpo... 

Em seguida, martirizações no além-túmulo! Que
será, então, a vida? Sucessivo desenrolar de misérias e lágrimas?


Não haverá recurso à semeadura da paz? Por mais que deseje firmar-me no otimismo, sinto que a noção de infelicidade me bloqueia o espírito, como terrível cárcere do coração. Que desventurado destino, generoso benfeitor!.


Chegado a essa altura, o vendaval da queixa me conduzira o
barco mental ao oceano largo das lágrimas.


Clarêncio, contudo, levantou-se sereno e falou sem afetação:


– Meu amigo, deseja você, de fato, a cura espiritual?


Ao meu gesto afirmativo, continuou:


– Aprenda, então, a não falar excessivamente de si mesmo, nem comente a própria dor. Lamentação denota enfermidade mental e enfermidade de curso laborioso e tratamento difícil. É indispensável criar pensamentos novos e disciplinar os lábios.


Somente conseguiremos equilíbrio, abrindo o coração ao Sol da Divindade. Classificar o esforço necessário de imposição esmagadora, enxergar padecimentos onde há luta edificante, sói identificar indesejável cegueira d'alma. Quanto mais utilize o verbo por dilatar considerações dolorosas, no círculo da personalidade, mais duros se tornarão os laços que o prendem a lembranças mesquinhas.


O mesmo Pai que vela por sua pessoa, oferecendo-lhe teto generoso, nesta casa, atenderá aos seus parentes terrestres. 


Devemos ter nosso agrupamento familiar como sagrada construção, mas sem esquecer que nossas famílias são seções da Família universal, sob a Direção Divina. Estaremos a seu lado para resolver dificuldades presentes e estruturar projetos de futuro, mas não dispomos do tempo para voltar a zonas estéreis de lamentação.

Além disso, temos, nesta colônia, o compromisso de aceitar o trabalho mais áspero como bênção de realização, considerando que a Providência desborda amor, enquanto nós vivemos onerados de dívidas. Se deseja permanecer nesta casa de assistência, aprenda a pensar com justeza.


Nesse ínterim, secara-se-me o pranto e, chamado a brios pelo generoso instrutor, assumi diversa atitude, embora envergonhado da minha fraqueza.


– Não disputava você, na carne - prosseguiu Clarêncio, bondoso -, as vantagens naturais, decorrentes das boas situações? Não estimava a obtenção de recursos lícitos, ansioso de estender benefícios aos entes amados? Não se interessava pelas remunerações justas, pelas expressões de conforto, com possibilidades de atender à família?


Aqui, o programa não é diferente. Apenas divergem os detalhes. Nos círculos carnais, a convenção e a garantia monetária; aqui, o trabalho e as aquisições definitivas do espírito imortal.

Dor, para nós, significa possibilidade de enriquecer a alma; a luta constitui caminho para a divina realização. Compreendeu a diferença? As almas débeis, ante o serviço, deitam-se para se queixarem aos que passam; as fortes, porém, recebem o serviço como patrimônio sagrado, na movimentação do qual se preparam, a caminho da perfeição. Ninguém lhe condena a saudade justa, nem pretende estancar sua fonte de sentimentos sublimes. Acresce notar, todavia, que o pranto da desesperação não edifica o bem. Se ama, em verdade, a família terrena, é preciso bom ânimo para lhe ser útil. Fez-se longa pausa. A palavra de Clarêncio levantara-me para elucubrações mais sadias.


Enquanto meditava a sabedoria da valiosa advertência, meu benfeitor, qual o pai que esquece a leviandade dos filhos para recomeçar serenamente a lição, tornou a perguntar com um belo sorriso:


– Então, como passa? Melhor?


Contente por me sentir desculpado, à maneira da criança que deseja aprender, respondi, confortado:


– Vou bem melhor, para melhor compreender a Vontade Divina.