quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Nosso Lar - 40 - Quem Semeia Colherá

Eu não sabia explicar a grande atração pela visita ao departamento feminino das Câmaras de Retificação. Falei a Narcisa, do meu desejo, prontificando-se ela a satisfazer-me.

– Quando o Pai nos convoca a determinado lugar - disse, bondosa, -, é que lá nos aguarda alguma tarefa. Cada situação, na vida, tem finalidade definida... Não deixe de observar este princípio em suas visitas aparentemente casuais. Desde que nossos pensamentos visem à prática do bem, não será difícil identificar as sugestões Divinas.


No mesmo dia, a enfermeira acompanhou-me, à procura de Nemésia, prestigiosa cooperadora naquele setor de serviço.


Não foi difícil encontrá-la.


Filas de leitos muitos alvos e bem cuidados exibiam mulheres, que mais se assemelhavam a frangalhos humanos.


Aqui e ali, gemidos lancinantes; acolá, angustiosas exclamações. Nemésia, que se caracterizava pela mesma generosidade de Narcisa, falou com bondade:

– O amigo deve estar agora habituado a estes cenários. No departamento masculino a situação é quase a mesma.


E, fazendo um gesto significativo à companheira, acentuou:


– Narcisa, faça o obséquio de acompanhar nosso irmão e mostrar os serviços que julgar convenientes ao aprendizado dele.


Fiquem à vontade.


Minha amiga e eu comentávamos a vaidade humana, sempre atida aos prazeres físicos, enumerando observações e ensinamentos, quando atingimos o Pavilhão 7. Localizavam-se ali algumas dezenas de mulheres, em leitos separados, um a um, a regular distância.


Estudava eu a fisionomia das enfermas, quando fixei alguém que me despertou mais viva atenção. Quem seria aquela mulher amargurada, de aparência original? Velhice que parecia prematura tipificava-lhe o semblante, em cujos lábios pairava um ricto, misto de ironia e resignação. Os olhos, embaciados e tristes, mostravam-se defeituosos. Memória inquieta, coração oprimido, em poucos instantes localizei-a no passado. 


Era Elisa. Aquela mesma Elisa que conhecera nos tempos de rapaz. Estava modificada pelo sofrimento, mas não podia ter quaisquer dúvidas. Lembrei, perfeitamente, o dia em que ela, humilde, penetrara em nossa casa levada por velha amiga de minha mãe, que aceitou as recomendações trazidas, admitindo-a para os serviços domésticos. 

A princípio, o ritmo comum, nada de extraordinário; depois, a intimidade excessiva, de quem abusa da faculdade de mandar e da
condição de servir alguém. Elisa pareceu-me bastante leviana e, quando a sós comigo, comentava sem escrúpulo certas aventuras da sua mocidade, agravando com isso a irreflexão de nossos pensamentos.


Recordei o dia em que minha genitora me chamou a
conselhos justos. Aquela intimidade, dizia, não ficava bem. Era razoável que dispensássemos à serva generosidade afetuosa, mas convinha pautar nossas relações com sadio critério. Entretanto, estouvadamente, levara eu muito longe a nossa camaradagem.


Sob enorme angústia moral, abandonou Elisa, mais tarde, a nossa casa, sem coragem de me lançar em rosto qualquer acusação. E o tempo passou, reduzindo o fato, em meu pensamento, a episódio fortuito da existência humana. No entanto, o episódio, como alguma coisa da vida, estava também vivo. 


A minha frente tinha Elisa, agora, vencida e humilhada! Por onde vivera a mísera criatura, tão cedo atirada a doloroso capítulo de sofrimentos?

Donde vinha? Ah!... naquele caso, não me defrontava o Silveira, perto de quem pudera repartir o débito com meu pai. A dívida, agora, era inteiramente minha. Cheguei a tremer, envergonhado da exumação daquelas reminiscências, mas, qual criança ansiosa de perdão pelas faltas cometidas, dirigi-me a Narcisa, pedindo orientação.

Eu mesmo me admirava da confiança que aquelas santas mulheres me inspiravam. Talvez nunca tivesse coragem de pedir ao Ministro Clarêncio as elucidações que pedira à mãe de Lísias e, possivelmente, outra seria minha conduta naquele instante, se tivesse Tobias a meu lado.


Considerando que a mulher generosa e Cristã é sempre mãe, voltei-me para a enfermeira, confiando mais que nunca. Narcisa, pelo olhar que me endereçou, parecia tudo compreender.

Comecei a falar, contendo o pranto, mas, a certa altura da confissão penosa, minha amiga obtemperou:


– Não precisa continuar. Adivinho o epílogo da história. Não se entregue a pensamentos destrutivos.


Conheço o seu martírio moral, de experiência própria. Entretanto, se o Senhor permitiu que reencontrasse agora esta irmã, é que já o considera em condições de resgatar a dívida.

Vendo a minha indecisão, prosseguiu:


– Não tema. Aproxime-se dela e reconforte-a.


Todos nós, meu irmão, encontramos no caminho os frutos do bem ou do mal que semeamos. Esta afirmativa não é frase doutrinária, é realidade universal. Tenho colhido muito proveito de situações iguais a esta. Bem-aventurados os devedores em condições de pagar.

E, percebendo-me a resolução firme de empreender o necessário ajuste de contas, acentuou:


– Vamos, mas não se dê a conhecer, por enquanto.


Faça-o, depois de beneficiá-la com êxito. Isso não será difícil, pelo fato de continuar ela em cegueira quase completa, temporariamente. Pelas forças que a envolvem, noto-lhe a triste característica das mães fracassadas e das mulheres de ninguém.Aproximamo-nos. Tomei a iniciativa da palavra confortadora.

Elisa identificou-se, dando o próprio nome e prestando, de boavontade, outras informações.


Havia três meses que fora recolhida às Câmaras de Retificação. Interessado em castigar a mim mesmo, diante de Narcisa, para que a lição me penetrasse n’alma com caracteres indeléveis, perguntei:

– E sua história, Elisa? Deve ter sofrido muito...


Sentindo a inflexão afetuosa da pergunta, sorriu, muito resignada, e desabafou:


– Para que lembrar coisas tão tristes?


– As experiências dolorosas ensinam sempre - objetei.


A infeliz, que apresentava profunda modificação moral, meditou alguns momentos, como quem concatenava idéias, e falou:


– Minha experiência foi a de todas as mulheres doidivanas que trocam o pão bendito do trabalho pelo fel venenoso da ilusão.


Nos tempos da mocidade distante, como filha de um lar paupérrimo, vali-me do emprego em casa de abastado comerciante, onde a vida me impôs imensa transformação. Esse negociante tinha um filho, tão jovem quanto eu, e depois da intimidade estabelecida entre nós, quando toda a reação de minha parte seria inútil, esqueci criminosamente que Deus reserva o trabalho a todos os que amem a vida sã, por mais faltosos que tenham sido, e entreguei-me a experiências dolorosas, que não preciso comentar.


Conheci, de perto, o prazer, o luxo, o conforto material e, em seguida, o horror de mim mesma, a sífilis, o hospital, o abandono de todos, as tremendas desilusões que culminaram na cegueira e na morte do corpo. Errei, muito tempo, em terrível desespero, mas, um dia, tanto roguei o amparo da Virgem de Nazaré, que mensageiros do bem me recolheram por amor ao seu nome, trazendo-me a esta casa de abençoada consolação.

Comovidíssimo até às lágrimas, perguntei: – E ele? Como se chama o homem que a fez tão infeliz?
Ouvia-a, então, pronunciar meu nome e de meus pais.


– E você o odeia? - indaguei, acabrunhado.


Ela sorriu tristemente e respondeu:


– No período do meu sofrimento anterior, amaldiçoava-lhe a lembrança, nutrindo por ele um ódio mortal; mas a irmã Nemésia modificou-me. Para odiá-lo, tenho de odiar a mim mesma. No meu caso, a culpa deve ser repartida. Não devo, pois, recriminar ninguém.


Aquela humildade sensibilizou-me. Tomei-lhe a destra sobre a qual, sem que o pudesse evitar, rolou uma lágrima de arrependimento e remorso.


– Ouça, minha amiga - falei com emoção forte -, também eu me chamo André e preciso ajudá-la. Conte comigo, doravante.


– E sua voz - disse Elisa, ingenuamente - parece a dele.


– Pois bem - continuei, comovido -, até agora, não tenho propriamente uma família em "Nosso Lar". Mas você será aqui minha irmã do coração. Conte com o meu devotamento de amigo.


No semblante da sofredora, um grande sorriso parecia uma grande luz.


– Como lhe sou grata! - disse ela enxugando as lágrimas - há quantos anos ninguém me fala assim, nesse tom familiar, dando-me o consolo da amizade sincera!... Que Jesus o abençoe.


Nesse instante, quando minhas lágrimas se fizeram mais abundantes, Narcisa tomou-me as mãos, maternalmente, e repetiu:


– Que Jesus o abençoe.

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